A propósito do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, assinalado dia 25 de Novembro, eis uma notícia publicada no Jornal de Notícias de 03/10/2006.
O número de queixas de violência doméstica aumentou 17% em 2005, relativamente ao ano anterior. O total de 18192 queixas formalizadas representa uma média de 50 por dia. O aumento registado pela PSP e GNR não foi acompanhado por idêntica subida junto da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, o que parece indiciar, mais do que um agravamento do fenómeno, sucesso de acções de sensibilização no sentido da participação policial.
Contra esse sinal eventualmente positivo há, contudo, motivos de pouca esperança ontem salientados pela Amnistia Internacional (AI), que apresentou as conclusões do estudo "Mulheres (In)visíveis". É que 40% dos agressores têm entre 25 ou 45 anos, o que demonstra não haver alterações "em paradigmas comportamentais e sociais muito enraizados em Portugal".
Na tentativa de aprofundar as causas da violência de género, Filipa Alvim, autora do estudo, adianta a hipótese de alterações nas motivações do agressor, resultantes do crescente grau de autonomia das mulheres. Contra um período em que a mulher vivia enclausurada entre poderes, transitando do paterno para o conjugal, hoje a sua crescente autonomia social, económica e sexual leva o agressor a agir "intranquilo" e movido pelo "medo da perda do seu estatuto".
Apesar desta hipótese de investigação, Filipa Alvim acentua ser ainda a dependência económica, a par da existência de filhos e de fragilidade psicológica, uma das razões mais apontadas pelas mulheres para não se libertarem do ciclo de violência.
Maus tratos psíquicos (32,5%) e violência física (32,2%) encabeçam as formas de violência doméstica, que passam também por ameaças (20%) ou, em menor expressão, pela violação (1,2%) e homicídio (0,06%). Embora percentualmente irrelevante, este último parâmetro não é de todo menor.
Anualmente, quase 60 mulheres são mortas pelos companheiros. Um ritmo mensal de cinco mortes, que coloca Portugal acima da média mundial de três mortes por mês.
Socos, pontapés e utensílios domésticos são os mais utilizados quando há violência física. O peso das armas de fogo é, ainda assim, assustador são usadas em cerca de 10% dos casos. Mais de metade das armas é de caça.
É neste quadro negro que Simões Monteiro, presidente da AI Portugal, assenta a recomendação para que se determine a inibição da licença de uso e porte de arma quando for aplicada a medida judicial de afastamento do agressor "ou quando existam antecedentes reveladores de violência doméstica".
Esta é apenas uma de 14 recomendações surgidas do trabalho, lançado no âmbito de uma campanha mundial da AI dedicada à violência sobre as mulheres, que se vai manter activa até 2010. Outra é um recado para as organizações não governamentais e sugere a adopção de um Modelo Padronizado de Queixa para a Violência Doméstica, à semelhança do já adoptado pelas entidades policiais, para que a linguagem e estatísticas sejam comuns e fiáveis.
Reestruturar a linha verde de apoio às vítimas - que "nem sempre disponibiliza informação correcta ou apoia na denúncia" - e aumentar o número de casas abrigo figuram também nas propostas.
Particularmente salientada é a situação de imigrantes vítimas de redes de tráfico e indocumentadas, para as quais não há respostas. "Não podem ser aceites nas casas abrigo, sob pena destas serem fechadas", salienta o relatório.Também virada para comunidades imigrantes é a recomendação para que sejam feitas acções direccionadas de sensibilização. Filipa Alvim admite não haver números trabalhados separadamente, mas salienta que, "por razões culturais, há comunidades para as quais a violência dentro do lar está normalizada".
Maria acabou de completar 36 anos e nos 17 que durou o seu casamento foi vítima de violência por parte do marido. "Estalos, socos, pontapés e, ainda por cima, à frente dos filhos", conta. "O problema era o álcool", justifica, porque "de resto, ele até era um bom pai", volta a justificar, como se não percebesse a dimensão do que lhe aconteceu.
E poderia ter continuado a acontecer, se não tivesse ido parar a uma das 33 casas de abrigo do nosso país; e se as assistentes sociais não a tivessem encostado à parede "O meu filho mais novo tem quatro meses e eu vim directamente da maternidade para aqui. Disseram-me que, se eu não viesse, se eu voltasse para o meu marido, me tirariam o bebé", pormenoriza.
Maria diz perceber as razões daquelas técnicas, diz ainda entender que o ambiente em que vivia não era adquado para si, um recém-nascido, uma criança e um adolescente, mas volta e meia lá repete que "ele até era um bom pai".
O problema, perspectiva Maria, "era o álcool". E relata, de olhos vazios, o dia sim, dia sim dos seus 17 anos de conjugalidade. "Andava sempre bêbado, chegava a casa, implicava por tudo e por nada e, por qualquer coisa, batia. Uma vez abriu-me a cabeça. E depois de bater, o normal era não me deixar ir ao hospital. Um dia teve que deixar, porque toda eu escorria sangue", recorda. Quem a levou foi a irmã, pessoa que "ajuda muito", muito embora nunca tenha denunciado o cunhado à policia. "Sabe como é, é medo, vergonha", diz. "Mas a polícia chegou a ir lá a casa. Falavam com ele e depois nada. Não fazem nada menina, não se metem",atira.
Ninguém se meteu e violência não faltou durante a gravidez. "Ainda não sei como o meu pequenito está vivo e saudável", diz. Maria e os seus três filhos estão agora a salvo numa casa de abrigo do Norte do país, mas o mais velho "sente-se preso" e está a ficar agressivo. "Já chegou a insultar-me", lamenta.
Quando se lhe pergunta o quer fazer quando sair dali, responde que gostaria que lhe dessem uma casa. Quando reformulamos a questão e perguntamos o que quer fazer por si, cai num silêncio longo, com os olhos ausentes, acabando depois por dizer "Não quero voltar para o Porto, quero ficar por cá, arranjar trabalho, arranjar um infantário para os meus filhos. E não quero mais homens. Quero paz".
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