Confesso a revolta que sinto sempre que os activistas e defensores do “Não” no referendo da despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), se arrogam o direito de se assumirem como soldados sem mácula, apostados numa luta sem tréguas a favor da Vida, relegando todos os outros para o patamar infame da insensibilidade, para as malhas obscuras da falta de ética e para o nebuloso mundo do facilitismo imoral.
Confesso a revolta que sinto ao perceber que por via da radicalização do discurso, se perde uma oportunidade única de esclarecer e elucidar as pessoas sobre um tema que é basilar numa sociedade que se quer justa e solidária. Tenho a convicção de que se se mantiverem os registos de intolerância praticados durante a pré-campanha, estar-se-á a dar uma grande ajuda à abstenção. É que já ninguém tem paciência para debates em que ninguém se ouve, em que não é possível completar um raciocínio sem se ser interrompido, em que a cada momento se transgridem as mais elementares regras da boa educação.
Apesar deste meu pessimismo, penso que vale a pena fazer um esforço e promover na sociedade uma discussão séria sobre o aborto clandestino e a sua expressão em Portugal. Será que existe a consciência de que Portugal é o país da Europa onde se praticam mais abortos clandestinos por ano? E que as mulheres portuguesas são as que em maior número padecem vitimas deste flagelo? Teremos a consciência de que somos dos poucos países da Europa, em que as mulheres continuam a ser perseguidas, julgadas e condenadas por recorrerem a este expediente quando confrontadas com uma gravidez que não foi planeada?
Com a manutenção da actual lei estaremos a perpetuar esta triste realidade, não estaremos a proteger a VIDA, estaremos sim a empurrar mulheres frágeis e desesperadas para o aborto clandestino e para as camas de hospital. Ao contrário, se o “Sim” ganhar no dia 11 de Fevereiro, o aborto deixará de ser um caso de polícia e dos tribunais e passará a ser um problema que a toda a sociedade dirá respeito, numa responsabilidade partilhada por todos os cidadãos, comprometidos com a efectiva erradicação do aborto clandestino em Portugal.
Os críticos à despenalização da IVG acusam quem defende a alteração à lei de pretender liberalizar o aborto, dar apenas resposta ao dilema legal, quando o que está em causa são questões do foro ético e moral e da própria protecção da vida. Com todo o respeito que a diversidade de opiniões me inspira, considero no mínimo demagógica e incoerente esta posição. Como se pode falar em liberalização do aborto se a despenalização abrange apenas as primeiras 10 semanas de gestação e se obriga a que a interrupção só possa acontecer em unidades médicas legais? Como se pode falar em protecção absoluta da vida se se concorda com a lei vigente, que determina que no caso de se estar perante uma gravidez fruto de uma violação, então é permitida a interrupção da mesma até à 16ª semana de gestação e no caso do feto ser portador de más formações diversas ou de trissomia 21 até à 24ª semana?
A verdade, caros críticos da despenalização, é que aqueles que ambicionam pela alteração da lei, também são contra o aborto e a favor da vida. Também temos ética e moral, também somos pessoas de bem, dignas e que sonham com um Portugal melhor...
Não queremos é esconder o sol com a peneira. Sabemos que temos um problema de saúde pública e queremos acabar com ele. Queremos que as mulheres tenham a sua saúde assegurada. Queremos que as mulheres tenham acesso a um aconselhamento sobre as alternativas que têm face a esta difícil decisão que é abortar. Queremos que às mulheres seja concedida a liberdade para se questionarem, reflectirem e decidirem. Queremos alterar uma lei que é injusta e que por essa razão todos defendem que não se cumpra. Mas como podemos num estado de direito advogar o contorno ou o não cumprimento da lei? Não faz sentido...
Um estado democrático tem a obrigação de garantir o cumprimento da nossa Constituição, na qual a liberdade se assume como vector da afirmação da dignidade humana que conduz à construção de uma sociedade onde sejam garantidos os direitos fundamentais de todos os cidadãos.
O voto “Sim” no próximo dia 11 de Fevereiro e a vitória neste referendo será o fim de um silêncio absolutamente ensurdecedor, responsável por décadas de isolamento, injustiça, e vergonha nacional.
Sandra Vitorino
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